Em 1950, os americanos dominavam a fissão do U-233 em pesquisas do Projeto
Manhattan, uma iniciativa ultra-secreta de armas nucleares, Franklin Roosevelt
negociou com o governo Getúlio Vargas para envio do maior volume possível de
monazita para os Estados Unidos. Em contra partida, a Índia outro grande
proprietário de terras ricas em tório, suspendeu completamente as exportações
para desenvolver sua própria tecnologia atômica.
Uma trama
envolvendo negociações secretas, acordos internacionais, disputas políticas,
corrupção e exploração de trabalhadores liga o balneário de Guarapari, no
Espírito Santo, ao programa de produção de armas nucleares dos Estados Unidos
durante e depois da Segunda Guerra Mundial. O pivô de tamanha disputa é
justamente o patrimônio que mais tarde deu fama à cidade por suas propriedades
medicinais: a areia monazítica, rica em elementos radioativos. Essa areia
abastecia as pesquisas de projetos secretos criados pelo governo
norte-americano para acelerar a produção de bombas atômicas, sobretudo no
período da Guerra Fria.
A reportagem do
Gazeta Online teve acesso a documentos dos governos brasileiro e
norte-americano, pesquisas acadêmicas, notícias de jornais da época e
fotografias de arquivos públicos, que comprovam o envio de areia monazítica de
Guarapari e outros municípios capixabas, do Rio de Janeiro e Bahia para os
Estados Unidos – além de França, Alemanha e Inglaterra – entre as décadas de 1890
e 1960. Muitas vezes o envio era feito a “preço de banana” ou de forma
clandestina, declarada como areia comum para preencher o lastro dos navios.
Esse material, no entanto, é rico em tório, elemento radioativo muito visado em
dois momentos da história: primeiramente usado para fabricação de luminárias a
gás, exportada para a Europa a partir de 1890, e depois pela indústria nuclear
na década de 1940, para desenvolvimento da bomba atômica.
Nesse caso,
o tório virou alvo de cobiça internacional após a descoberta de que
poderia ser produzido a partir dele Urânio 233 (U-233), elemento criado em
laboratório e usado em reatores ou bombas atômicas.
Retirada e transporte de areia
monazítica de Guarapari no início do século XX. O material seguia para galpões
de separação e estocagem, como retrata a imagem da capa, também do mesmo
período. Fotos: Acervo Ufes
Entre boatos e
verdades, há quem diga até que a areia monazítica de Guarapari foi usada para a
produção da bomba que caiu sobre a cidade japonesa de Hiroshima, em 1945,
matando cerca de 80 mil pessoas no episódio mais marcante da Segunda Guerra
Mundial. Tal história circulou por diversos jornais e permeou discursos de
figuras políticas brasileiras na década seguinte, a partir das investigações de
que centenas toneladas de areia monazítica saíram do Espírito Santo de forma
clandestina durante décadas a fio. O fato é que não é possível precisar quanto
da areia foi levado durante esse período. Após o escândalo invadir o
noticiário, estimou-se que pelo menos 200 mil toneladas de areia e tório haviam
sido retiradas (legal e ilegalmente) de praias brasileiras em pouco mais de 50
anos. Guarapari era o principal polo de extração.
TRIGO, SOLDADOS E AREIA
A partir da década
de 40, acordos oficiais entre Brasil e Estados Unidos consolidaram o que já era
feito por empresas privadas sem qualquer controle e fiscalização. Getúlio
Vargas se comprometeu a enviar a areia monazítica brasileira aos americanos, a
preços módicos, como parte da “Política da Boa Vizinhança” entre os dois
países.
Parte da elite
intelectual brasileira defendia que a matéria-prima fosse mantida no país, e
que fosse criada uma política nacional para desenvolvimento da tecnologia
nuclear, o que não avançou. Além disso, apesar de inúmeras tentativas, os EUA
não concordavam em compartilhar tecnologia e conhecimento atômico com o Brasil.
Isso acabou gerando um mal-estar político que culminou com a criação de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 1956, para investigar os interesses
brasileiros em torno dos acordos com os EUA.
Em outras negociações, foram trocadas
toneladas de areia por trigo americano. Documentos mostram que o acordo
favorecia somente a potência americana. O Brasil chegou a tentar enviar
mais tório beneficiado em usinas locais, como forma de garantir mais lucros. No
entanto, em uma manobra política, os Estados Unidos passaram a taxar a entrada
do tório beneficiado em 33%, inviabilizando o envio por parte do Brasil. A
areia monazítica bruta, por sua vez, não era taxada.
Em um terceiro
momento, o Brasil foi forçado a se decidir entre enviar tropas aliadas para a
Guerra da Coreia, em 1951, ou se comprometer a enviar mais areia monazítica e
outras “matérias-primas estratégicas” para os portos norte-americanos. Parte da
imprensa da época, de forte apelo nacionalista, chegou a tratar o assunto como
um escândalo, com a pergunta “areia ou carne para canhão?”.
Em torno de toda a
polêmica, homens ficaram milionários com a exploração da areia capixaba,
enquanto que operários que trabalhavam diretamente com ela sofriam com baixos
salários e jornada exaustiva. Do outro lado do continente, essa areia
alimentava a sedenta indústria nuclear americana durante a Guerra Fria. Bombas
de Urânio 233, produzidas a partir do tório extraído no Brasil, foram lançadas
durante testes em 1956, segundo os arquivos das forças armadas americanas.
No entanto, não há informações sobre quantas bombas foram produzidas e podem
estar armazenadas até hoje em território americano, representando
a participação do Brasil em uma guerra nuclear cujo acesso a informações
até hoje é restrito.
Boris Davidovitch durante audiência
da CPI da energia atômica, em 1956. Foto: Tribuna da Imprensa
Um só homem foi
acusado por grande parte da imprensa brasileira e deputados de ter faturado
milhões de dólares em Guarapari com a extração de areia monazítica praticamente
de graça, durante quase 30 anos, exportando para diversos países do mundo. Seu
nome é Boris Davidovitch.
Natural da cidade
de Odessa (então pertencente ao Império Russo, hoje Ucrânia), Boris era também
naturalizado norte-americano, francês e brasileiro. Ele chegou ao Brasil em
1940 como procurador da “Société Minière”, empresa francesa que já mantinha a
exploração de monazita no Espírito Santo e, em apenas um ano, já era dono de
todo o patrimônio radioativo da cidade de Guarapari. A empresa, que mantinha
uma exploração modesta desde a década de 20, foi transformada, em 1941,
na Mibra – Monazita Ilmenita do Brasil, o que lhe rendeu um processo
criminal na França por peculato, arquivado anos depois por falta de provas.
Boris
possuía diversas ações na empresa e conseguiu uma procuração que daria plenos
poderes sobre a Minière no Brasil. O russo vendeu a empresa e abriu uma nova, a
Mibra, usando todo o patrimônio da Minière, só que com ele no comando. Por
isso, foi acusado de vender ações que não eram dele e chegou a responder a um
processo por peculato na França, arquivado anos depois.
Davidovitch chegou
a possuir até cinco empresas diferentes no mundo todo relacionadas à extração e
beneficiamento de areia monazítica no Estado e não pagou quase nada de impostos
aos cofres públicos. Em 1955, por exemplo, apesar de já possuir um império de
exportação de monazita, declarou faturamento de apenas Cr$ 15.000, quantia
considerada fora dos padrões para uma empresa mineradora. Os documentos foram
apresentados durante a CPI da Energia Atômica, criada para investigar o
caso em 1956, e da qual Boris foi intimado a depor.
As empresas do
barão da monazita cobriam a totalidade do processo de extração e beneficiamento
da areia. A IMOCAP, por exemplo, tratava das concessões de terra, comprando
loteamentos estratégicos que poderiam conter o mineral. Em seguida, uma segunda
empresa, de tratores, fazia a limpeza do terreno. Outra ainda montava as
instalações e maquinário para o beneficiamento, até que chegava a Mibra, que
ensacava e exportava. Para o transporte era utilizada a CENES, que possuía uma
pequena frota de navios. Além disso, outra empresa de Boris, a Inaremo, fazia o
beneficiamento da areia, extraindo o tório.
Boris Davidovitch
também era acionista da “Lindsay Light and Chemicals”, empresa americana que
comprou monazita da Mibra durante vários anos. Ou seja: no final das contas, o
russo vendia dele para ele mesmo com a finalidade de se livrar de taxações de
exportação e outros impostos por parte do governo brasileiro.
Estima-se que
Davidovitch tenha revirado mais de 70 quilômetros de praias, destruindo restingas
em Muquiçaba, Castanheiras (Guarapari), Mãe-bá e Ubu (Anchieta), e outras
praias, deixando apenas crateras no lugar. A empresa conseguia retirar até 36
toneladas por dia no auge de suas atividades. Durante todos esses anos, as
exportações ocorriam pelos portos de Guarapari, Vitória e Rio de Janeiro.
Até o ano de 1956,
ano em que foi instaurada uma CPI na Câmara dos Deputados para investigar
denúncias de corrupção e clandestinidade na extração da monazita, todo a areia
extraída e o tório extraído a partir dela desde o século anterior, além de
outras terras raras, teriam um valor estimado de 227 bilhões de dólares.
Enquanto isso, Boris pagava cerca de Cr$ 0,80 de imposto à prefeitura do
município por ano desde que começou a atuar na cidade, segundo denuncias da
própria prefeitura de Guarapari feitas ao jornal Tribuna da Imprensa (RJ).
As
terras raras são 17 elementos químicos agrupados em uma família na tabela
periódica porque ocorrem juntos na natureza e são quimicamente muito parecidos.
Os nomes são: lantânio, neodímio, cério, praseodímio, promécio, samário,
európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio, escândio
e lutécio.
“Nasci e criei-me
aqui. Nunca vi esse homem fazer qualquer coisa em benefício dessa terra”,
protestou ao jornal o prefeito Epaminondas de Almeida, em 1956. Epaminondas
assumiu a prefeitura após seu antecessor, Edizio Cirne, ser afastado porque deu
uma “bofetada” na cara de Boris. O empresário queria brigar na justiça pela
exploração das areias da praia da Areia Preta, mas o prefeito disse que
defenderia a praia “até debaixo de bala”.
Barracão da Inaremo, onde o tório era
separado da areia
Vista da Prainha de Muquiçaba, com o
galpão da Mibra à frente, na década de 1940
Navio suíço no antigo porto da cidade
O navio Fjord foi um dos mais ativos
no transporte de monazita em Guarapari
INVESTIGADO
A influência de Boris Davidovitch se
dava além do mundo empresarial. Enquanto um dos homens mais ricos do país, ele
gozava também de boa influência política e usava métodos nem sempre lícitos
para conseguir o que queria.
Na CPI da Energia
Atômica de 1956, foram apresentadas correspondências mostrando que ele subornou
juízes e desembargadores para julgar demandas de terras em que ele estava
interessado. O russo, em depoimento, reconheceu a legitimidade dos documentos.
Ele também insinuou
comprar os jornais O Globo e Tribuna da Imprensa para que deixassem de
atacá-lo. “Os jornalistas ficaram muito insatisfeitos com o passeio que fizeram
e vamos ter que comprar O Globo e A Tribuna de Imprensa pra ver se vão falar
alguma coisa”, escreveu em uma das correspondências analisadas pela CPI.
TRABALHO ESCRAVO
Durante a mesma
CPI, deputados, técnicos e jornalistas visitaram as instalações da Mibra em
Guarapari e descobriram diversas irregularidades. Faltavam livros de controle e
o fiscal designado pelo Governo não sabia identificar as diferentes areias por
cor. O fiscal sequer tinha autonomia para fiscalizar, visto que morava em um
apartamento bancado pela própria Mibra.
Notícia de junho de 1956 relata a
visita de deputados da CPI da Energia Atômica e jornalistas a Guarapari, onde
constataram indícios de trabalho escravo e falta de fiscalização nas atividades
da Mibra. Fonte: Imprensa Popular / RJ
A denúncia mais
grave, no entanto, foi a de trabalho escravo. Segundo relatou a jornalista
Maria da Graça, do periódico carioca Imprensa Popular, “os 27 trabalhadores
tinham ausência total de cor nas faces e lábios, magreza doentia, olhar
mortiço, mãos e pés de coloração anormal devido ao constante contato com a
umidade da areia. Todos descalços e semi-nus, vestidos apenas de calções
esfarrapados”. Ela foi uma das repórteres de diversos jornais que acompanharam
a visita da CPI às instalações da Mibra em Guarapari.
Um médico do
Ministério do Trabalho verificou as condições insalubres e identificou anemias,
câncer e erosão de pele em muitos trabalhadores.
Na ocasião, o
sindicato da categoria explicou à imprensa que os trabalhadores aceitavam as
condições de trabalho porque, fora do verão, a Mibra era a única que empregava
os homens de Guarapari.
Segundo Dr. Antônio
da Silva Mello, médico que descobriu e popularizou o uso terapêutico das areais
monazíticas, a Mibra era a única empresa que empregava os moradores de
Guarapari, mas mantinha seus funcionários em condições precárias. “A Mibra
funcionava dia e noite, tendo três turnos de operários que recebiam salários
miseráveis e desconheciam a utilização e para onde era levadas as areias”,
afirmou Silva Mello em seu livro “Guarapari – Maravilha da Natureza”.
Boris também
afirmou em depoimento à CPI que exportou cerca de 10.000 toneladas de monazita
para os Estados Unidos mesmo depois de uma lei promulgada em 1951, que proibia
a exportação por empresas privadas.
A
Lei Federal n°1310 proibiu a exportação de monazita bruta num esforço de tentar
despertar o interesse de empresas nacionais em beneficiar o material. Assim, os
sais de terras raras seriam exportados enquanto o tório, considerado mineral
estratégico, seria mantido no Brasil.
Mesmo
com a lei em vigor, as exportações ilegais continuaram.
MORTE MISTERIOSA
Boris Davidovitch faleceu no dia 20
de setembro de 1960. Segundo informações extra-oficiais, ele morreu de infarto
após desembarcar no aeroporto Charles de Gaule, em Paris.
Após a morte de
Davidovitch, as atividades da Mibra foram encerradas. A pesquisadora Beatriz
Bueno, autora do livro “Guarapari, muito mais que um sonho lindo”, conversou
com antigos trabalhadores da empresa. Eles relatam que assim que a morte do
barão da monazita foi decretada, houve ordens para queimar todos os documentos
da empresa e enterrar maquinários na areia.
O OUTRO BARÃO
Além da Mibra,
outra empresa atuava na extração e beneficiamento de monazita e ilmenita no
Espírito Santo: a Orquima (Indústrias Químicas Reunidas), com sede em São
Paulo. Seu proprietário, Augusto Frederico Schmidt, também foi convocado a
depor na CPI da Energia Atômica, quando se recusou a divulgar os nomes dos
principais acionistas da empresa à época. Schmidt era bastante influente no
meio político, foi assessor direto e amigo pessoal do presidente Juscelino
Kubitschek e, depois, do general Humberto Castelo Branco, primeiro presidente
da ditadura militar.
Augusto Frederico Schmidt, dono da
Orquima, comandava a extração de areia monazítica no Norte do Espírito Santo e
era um defensor da livre exportação do material
Enquanto que a
Mibra de Boris concentrava a exploração de monazita ao Sul do Espírito Santo, a
Orquima obteve licença para extração na faixa que seguia de Vitória até o
extremo norte capixaba, em Conceição da Barra, além do Sul da Bahia. As jazidas
com maior atividade ficavam em Carapebus, na Serra, mas também há registros de
retirada de areia até mesmo na Praia do Suá (Vitória), Nova Almeida, Regência
(Linhares) e São Mateus. Mais tarde, a empresa também explorou areias de Ponta
da Fruta, em Vila Velha.
Mibra e Orquima
chegaram a atuar em conjunto e eram representadas pelo mesmo advogado. Schmidt
dotava de grande influência internacional e não escondia sua posição favorável
à exportação de terras raras (como a monazita) por empresas privadas, mesmo
após decretos presidenciais da década de 50.
O relatório final
da CPI da Energia Atômica, de qualquer modo, acabou por não atingir
criminalmente nenhum dos empresários denunciados por fraude na exploração de
monazita no Brasil, nem autoridades ligadas aos escândalos de suborno e
corrupção revelados pelas cartas de Boris Davidovitch.
Com o volume de 85.897 toneladas exportadas, Brasil com 80% foi o maior produtor entre EUA e India
Dados do Departamento do Interior dos
EUA mostram o volume de areia extraído em 62 anos pelos principais produtores.
Estima-se que pelo menos o dobro desse total tenha sido transportado
clandestinamente
Ainda assim, o trabalho
da CPI ajudou a jogar luz sobre uma atividade que já durava décadas, com
fiscalização precária, denúncias de corrupção e acordos internacionais que
prejudicavam o Brasil. O relatório final da CPI foi primordial para criar uma
política nacional de energia atômica, embora a maior parte das jazidas de
monazita e outras terras raras já estarem esgotadas na época.
Reportagem de Edmar Morel para o
Última Hora em 1957 retratava a condição degradante dos trabalhadores de
Guarapari
O jornal carioca Tribuna da Imprensa
tratou a CPI de 1956 como um escândalo nacional de corrupção
O mesmo jornal acompanhou os
deputados e constatou que o fiscal do governo não sabia sequer diferenciar
monazita de outras areias
O repórter do Diário da Noite,
Antenor Novais, viajou a Guarapari para constatar a total falta de controle na
exploração do tório de Guarapari
Denúncia do deputado capixaba Anibal
Soares, representando a ala nacionalista política, de que o tório chegava a ser
mais caro que o ouro nos EUA, mas era declarada a preço de banana pela Mibra no
Brasil
Reportagem do “Diário da Noite” de
1956 comparava o esquema americano de proteção ao minério com o descaso em
Guarapari na proteção do mesmo patrimônio
Nova reportagem denuncia o aumento do
embarque da areia do Espírito Santo, muitas vezes feito durante a madrugada
O Última Hora de dezembro de 1956
destacava que a “praia mais famosa do Brasil” estava abandonada pelo poder
público, sem qualquer fiscalização da extração de areia. Diversos jornalistas
viajaram para a cidade para cobrir a polêmica das areias radioativas exportadas
sem controle
O PRIMEIRO EXPLORADOR
O potencial das
areias monazíticas brasileiras foi descoberto ainda no final do século XIX.
Várias publicações apontam o engenheiro americano John Gordon como o
primeiro a olhar para as areias das praias do sul da Bahia e perceber uma
diferença de coloração com relação a outros lugares do litoral.
Gordon, funcionário
da empresa britânica de exportação de café Edward Johnston & Co., recolheu
amostras da areia e as enviou para o professor francês Henrique Gorceix,
fundador e então diretor da conceituada Escola de Minas de Ouro Preto. Após
análise, Gorceix informou em relatório que as areias continham algum tipo de
minério, mas desconhecia qualquer uso industrial.
De posse do
relatório, John Gordon foi a Europa procurar interessados em comprar o tal
mineral brasileiro e encontrou o austríaco Carl Auer von Welsbach, criador de
um sistema de lâmpadas incandescentes a gás que iluminou a Europa durante
vários anos. Ele descobriu que o óxido de tório era o melhor material para
produzir uma luz forte e duradoura, e encontrou em John Gordon o grande
vendedor de areia.
Enquanto a iluminação
elétrica ainda dava os primeiros passos na Europa, tanto a Auer Light quanto
diversas outras empresas europeias que fabricavam luminárias a gás
passaram a encomendar areia monazítica para a retirada do tório. Na época, a
maior parte da areia era extraída no balneário de Cumuruxatiba, na região de
Prado, Sul da Bahia.
John Gordon viu uma
oportunidade de negócios e conseguiu do governo brasileiro autorização para
mapear e identificar em que locais da costa havia a ocorrência desse tipo de
areia e explorá-la.
O sistema de iluminação a gás criado
pelo austríaco Carl Auer usava óxido de tório, derivado da monazita. A demanda
pela areia brasileira aumentou bruscamente. As lâmpadas eram usadas na
iluminação pública de grande parte da Europa e também dos Estados Unidos. O
principal vendedor, John Gordon, retirava areia do Sul da Bahia e fugia dos
impostos atuando na clandestinidade. Muitas vezes encheu navios declarando que
a areia serviria apenas como lastro.
A reportagem do
Gazeta Online encontrou registros de jornais brasileiros que relatam, entre
1880 e 1910, atos do Poder Executivo brasileiro concedendo a John Gordon
inúmeras porções de terra com areia monazítica. Há registros também de acusações
contra o americano por ter subornado governantes e tomado terras de outros
homens, sobretudo no Sul da Bahia. Para convencer o governo de que sua proposta
era vantajosa, ele alegava que as areias eram um bem infinito, com grande
potencial de exploração e sem grandes impactos à natureza. Seja por má-fé ou
falta de conhecimento técnico, as autoridades brasileiras acabaram aceitando as
propostas de Gordon, que pagava menos pela posse das terras do que os antigos
donos. Ele também ficou milionário com a exploração.
AREIA CAPIXABA
A areia monazítica de
Guarapari só foi descoberta em 1898 e, oito ano depois, foi instalada a empresa
franco-brasileira Société Minière Industrielle Franco-Brasilienne.
A “Minière”, que
funcionava à beira do porto de Guarapari – onde hoje existe uma praça –
retirava areia monazítica da praia e do fundo do mar e separava, através de
eletroímãs e lavagem, a monazita (dourada), a ilmenita (preta), a zirconita
(cinza) e a granada (vermelha). O material era ensacado e carregado em navios
com destino à França.
CONTRABANDO E “TESTAS-DE-FERRO”
Contando com o
monopólio da exploração de monazita no Brasil e gerenciando a extração das
areias de Cumuruxatiba e Prado, na Bahia, John Gordon colocava
“testas-de-ferro” para liderar a empresa em Guarapari. Diversos registros, no
entanto, colocam em dúvida a legalidade das suas atividades.
Segundo a
pesquisadora Beatriz Bueno, John Gordon explorou e exportou ilegalmente areias
monazíticas das praias de Guarapari dentro de navios, disfarçadas de lastro.
“Diversas embarcações que não tinham nada para fazer em Guarapari estacionavam
na nossa praia e pegavam a areia com a desculpa de fazer peso nos porões. Nós
fomos saqueados durante anos”, conta Beatriz. A prática de encher navios vazios
de areia já era feita por Gordon no Sul da Bahia.
Os navios Mercator e
Fijord foram presença fiel no porto de Guarapari durante as várias décadas de
exploração da areia monazítica. O jornal carioca Última Hora, em reportagem
sobre a extração ilegal das areias em 1948, conversou com moradores de
Guarapari que confirmaram que as duas embarcações, a primeira de bandeira sueca
e a segunda norueguesa, aportavam regularmente no cais e eram carregados com
sacos de areia monazítica sem qualquer fiscalização.
No acordo com o Brasil, a empresa
pagava 4% do preço de exportação ao nosso governo. Porém, o governo de
Guarapari arcava com parte dos custos de extração. Sobrava, então, pouco mais
de 1% do preço da venda para o município.
Além disso, a areia
que seguia para a Europa e Estados Unidos eram declaradas a preços três vezes
mais baixos do que o praticado pelo mercado internacional. No início do
século XX, o quilo do nitrato de tório era vendido a US$ 500 nos Estados
Unidos. Com a areia brasileira clandestina, o preço caiu drasticamente.
Ao jornal Imprensa
Popular, em 1956, o Deputado capixaba José Cupertino de Almeida denunciou a
baixa taxa de impostos cobrados pela exploração da areia monazítica de
Guarapari. “É doloroso registrar que o município de Guarapari possui uma das
maiores reservas de minerais atômicos do mundo e, no entanto, é um dos
municípios mais pobres do país”.
A ORIGEM DO INTERESSE ATÔMICO
Com a popularização
da energia elétrica, a partir de 1920, a exportação da monazita sofreu uma
queda, até que as pesquisas sobre energia atômica se intensificaram no período
da Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria. A monazita foi, então, recolocada
em evidência por conter tório, elemento radioativo do qual é possível fabricar
o urânio-233.
PROJETO MANHATTAN
Bomba de Urânio-233 lançada em 1956
durante testes no deserto de Nevada, nos Estados Unidos
Passados 70 anos do
fim da Segunda Guerra Mundial, não há documentos que comprovem que a areia
monazítica de Guarapari e de outras regiões brasileiras foi usada especificamente
nas bombas lançada sobre Hiroshima e Nagasaki. Pelo contrário: sobre esse
assunto restam mais provas contrárias, uma vez que o elemento base da bomba
batizada de Little Boy era o Urânio-235 (U-235), e não o U-233
gerado a partir do tório das areias. Já a bomba que caiu sobre Nagasaki tinha
como base o Plutônio.
De qualquer moddo,
o Urânio-233 chegou a ser usado em pesquisas do Projeto Manhattan, uma
iniciativa ultra-secreta voltada para o desenvolvimento de armas nucleares pelo
governo americano. Oficialmente, bombas de U-233 só foram produzidas por
volta de 1950, durante a Guerra Fria, quando havia um grande temor por parte
dos norte-americanos de que a União Soviética estivesse produzindo suas
próprias armas nucleares.
É aí que a monazita
brasileira assume papel estratégico para os EUA. Os americanos já dominavam a
fissão do U-233 e o envio da areia que já acontecia há anos se intensificou
ainda mais. O alto escalão político do governo de Franklin Roosevelt
tratou de negociar com o governo de Getúlio Vargas para conseguir o
embarque do maior volume possível de monazita para os Estados Unidos. O
maior ponto de extração era Guarapari. Para tanto foram enviados embaixadores e
comissários americanos para conversar diretamente com assessores e ministros de
Vargas. A maior parte das visitas está documentada no livro oficial do Projeto
Manhattan, disponível para consulta no site das Forças Armadas americanas.
A
Índia, outro grande proprietário de terras ricas em tório, suspendeu
completamente as exportações para desenvolver sua própria tecnologia atômica,
dez dias após o fim da Segunda Guerra Mundial. Isso ajuda a justificar o
interesse ainda maior dos americanos pela monazita brasileira.
O envio –
clandestino ou oficial – perdurou fortemente por pelo menos mais 15 anos. O
fato é que o Urânio-233 ganhou destaque em um projeto de pesquisas em armas
nucleares, batizado de Operação Teapot. Ao todo, 14 bombas foram lançadas em
pontos do deserto de Nevada, nos EUA, sendo que algumas tinham como base o U-233,
combinado com Plutônio. Tudo documentado pelo exército, com fotos e vídeos. O
total de bombas desenvolvidas durante o projeto, porém, é desconhecido.
Veja um dos vídeos
produzidos durante a Operação Teapot
https://www.youtube.com/watch?v=xvfwv-LYl9k
Teste com bomba de U-233 durante a Operação Teapot, 1955. Todas as fotos desta galeria pertencem ao Departamento de Estado norte-americano
Teste com bomba de U-233 durante a
Operação Teapot, 1955
Observadores acompanham o lançamento
de bomba no deserto de Nevada
Destroços analisados após queda de
bomba-teste em Nevada, 1955
Teste com bomba de U-233 durante a
Operação Teapot, 1955
A BOMBA BRASILEIRA
Almirante Álvaro Alberto (ao centro),
primeiro representante brasileiro na Comissão de Energia Nuclear da ONU e
fundador do CNPq, defendia o intercâmbio de conhecimento atômico com outros
países, ideia fortemente combatida pelo governo americano
A questão nuclear
brasileira começou no primeiro governo Vargas e refletiu durante muitos anos o
papel do Brasil como exportador de matérias primas em detrimento do
desenvolvimento de produtos e tecnologias.
Apesar do potencial
nuclear das areias monazíticas de Guarapari ter sido descoberto por volta de
1890 por empresas estrangeiras, foi apenas em 1940 que o governo brasileiro
começou a voltar a atenção para os recursos nucleares do país.
Neste ano foi
firmado com os EUA um Programa de Cooperação para a Prospecção de Recursos
Minerais que possibilitou a identificação de depósitos de areias monazíticas
localizados entre São Francisco de Itabapoana (RJ) e Guarapari (ES).
Em 1945, foi
assinado o primeiro acordo com os Estados Unidos, que previa um fornecimento de
5.000 toneladas anuais de monazita e que poderia ser prorrogável por até dez
vezes. Três anos depois, o Conselho de Segurança Nacional denunciou o acordo
alegando que não havia nenhum retorno de benefício claro dos EUA em troca da
monazita. As exportações foram interrompidas demonstrando o primeiro ato de
preocupação do governo visando resguardar as matérias-primas nucleares
existentes no solo brasileiro.
A Lei 1.310 de
1951, que criou o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), estabeleceu o
monopólio estatal dos principais minérios atômicos, proibindo a exportação de
urânio e tório, a não ser por autorização expressa do governo.
O CNPq, através do
almirante Álvaro Alberto, propunha uma política nacional de energia nuclear com
planos de produção de urânio enriquecido, construção de reatores e busca de
apoio científico e tecnológico em outros países além dos Estados Unidos. Os
detalhes do acordo foram descritos pelo pesquisador Kurt Rudolf Mirow, no livro
“Loucura nuclear: os enganos do Acordo Nuclear Brasil Alemanha”.
Para o CNPq, o
material radioativo só poderia ser exportado caso houvesse uma compensação
específica: o material seria trocado por conhecimento tecnológico para a
criação de reatores nucleares. No entanto, essa demanda ia contra a Lei McMahon
dos Estados Unidos, que protegia todos os conhecimentos associados à energia
nuclear.
O almirante passou,
então, a procurar e propor acordos com outros países que fossem mais vantajosos
para o Brasil. Ele defendia, notadamente, uma cooperação com a República
Federal da Alemanha, que estava pesquisando uma maneira alternativa de
enriquecimento de urânio.
Assim, foi feito um
acordo secreto com a Alemanha para instalação de três equipamentos de
enriquecimento de urânio no Brasil, apesar da eficácia do método pesquisado
pelos alemães estar longe de ser comprovada.
Após a compra das
máquinas e do treinamento de centenas de pesquisadores, a suspeita se
confirmou: o processo por jet-nozzle usado pelos alemães era
altamente complexo, e totalmente inviável para os fins que o Brasil desejava.
Uma sabotagem também prejudicou os planos de Álvaro Alberto: contrários a
qualquer acordo paralelo, os americanos conseguiram barrar o envio das
centrífugas alemãs poucos dias antes do embarque para o Brasil.
Oficialmente, é aí
que termina a primeira tentativa do governo brasileiro de adquirir a tecnologia
para a produção de reatores nucleares. No entanto, sempre houve a suspeita de
que o verdadeiro motivo do acordo com a Alemanha era adquirir a tecnologia para
a bomba atômica.
A pesquisadora
Tânia Malheiros, autora de “Brasil: A Bomba Oculta – O Programa Nuclear Brasileiro”,
afirma que o governo manteve dois programas nucleares: o oficial, com fins
pacíficos, e o paralelo e sigiloso. Sempre houve facções do regime que
defendiam que a única maneira do Brasil ser respeitado no mundo seria ter a
bomba.
A Constituição de
1988 havia proibido o país de usar a tecnologia nuclear para fins bélicos, mas
o “esforço paralelo” dos militares sobreviveu até 1990, segundo confirmou mais
tarde José Carlos Santana, ex-presidente da Comissão Nacional de Energia
Nuclear no governo Collor.
Para Marcos
Tadeu, físico e pesquisador das areias monazíticas de Guarapari, o
tório capixaba chegou a ser usado nesse esforço paralelo dos militares, mas se
provou pouco eficaz e foi abandonado alguns anos depois.
A suspeita de que o
Brasil trabalhava secretamente em uma ogiva nuclear tornou-se mais intensa na
segunda metade da década de 1980. Uma série de reportagens da mídia nacional
revelou aspectos secretos do programa atômico. Isso só fez aumentar os rumores
sobre um possível teste nuclear brasileiro.
A maior comprovação
do esforço para criação de uma ogiva nuclear, porém, só veio no final dos anos
80. O jornal Folha de São Paulo expôs a construção de instalações subterrâneas
que “se prestam a testes nucleares diversos” na Serra do Cachimbo, no Sul do
Pará. A área era militar, delimitada por decreto durante o governo Geisel. Na
época o presidente José Sarney negou que o espaço fosse utilizado para esses
fins.
Em 1990, porém, em
entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, Sarney contou que, ao assumir
o governo, descobriu que havia instalações nucleares na Serra do Cachimbo.
Pouco depois, ele
jogou uma simbólica pá de cal num poço de 320 m para testes nucleares e ordenou
sua destruição.
O fim da Exploração
A partir da morte
de Boris Davidovitch, a exploração de terras raras passou a ter um controle
maior do Estado e a sede da Mibra em Guarapari se transformou na empresa
Nuclemon, subsidiária da estatal Nuclebrás, criada para concentrar a exploração
desse tipo de material para interesses industriais.
A Nuclemon
continuou extraindo areia monazítica e beneficiando seus derivados por mais de
20 anos, até a década de 80, quando uma nova campanha capitaneada pelo então
prefeito de Guarapari, Graciano Espíndula, propunha o fim definitivo da
exploração da areia na cidade e mais investimentos em turismo e infraestrutura,
tornando o balneário atrativo para tratamento de pessoas com diversas doenças,
sobretudo reumáticas. “Se Cleveland (EUA) é a referência mundial em cardiologia,
Guarapari será referência em reumatologia”, declarou o prefeito em maio de
1983, em entrevista ao jornal A Gazeta.
O prefeito de Guarapari, Graciano
Espíndula, concede entrevista em 1983 ao jornal A Gazeta, dando sua versão da
briga judicial travada pelo fim da exploração de areia na cidade. Entrevista à
repórter Maura Fraga. Foto: Helô Santana
Na época os
benefícios das areias radioativas de Guarapari para tratamento de doenças já
eram bastante difundidos, e a cidade recebia turistas de diversas partes do
Brasil e do mundo entre os meses de março e junho. Uma série de reportagens publicadas
por A Gazeta mostrava histórias de gente que buscou Guarapari para se tratar e
acabou adotando o local como residência. Também não faltavam relatos de pessoas
creditando a cura de diversas doenças ao tratamento feito com a areia das
praias.
Diretor da Nuclemon, Delzo Marques,
se posiciona sobre a permanência da empresa em Guarapari por mais três anos. A
Gazeta, 7 de maio de 1983
O próprio prefeito
lembrou que uma história de infância o marcou profundamente e serviu como
estímulo para entrar na briga contra a exploração da areia na cidade.
“Lembro-me que vi um homem completamente paralítico descer de um barco e sendo
transportado para o outro lado da cidade, quando ainda não havia a ponte de
Guarapari. Depois descobri que se tratava do secretário de Estado de Minas
Gerais, vítima de reumatismo crônico, em busca da cura nas areias monazíticas.
Ele estivera na Europa para tratamento, sem resultado. Meses depois, vindo da
escola, vi aquele homem descer de um bonde, aqui mesmo em Vitória, sem a ajuda
de ninguém, e seguir rua afora. Essa imagem ficou gravada na minha memória”,
declarou Graciano, que se julgava um profundo interessado nas propriedades
medicinais das areias da cidade e era, por muitos, taxado de sonhador.
Por outro lado, a
continuação das atividades da Nuclemon deixava grandes buracos pela cidade e
incomodava autoridades e moradores. A areia extraída na cidade era enviada para
uma usina em São Paulo, de onde se retirava diversos elementos para fabricação
industrial, de eletrodos a fibras de vidro, indústria de lentes, de
televisores, além do próprio tório, de interesse da Comissão Nacional de
Energia Nuclear.
NA JUSTIÇA
Médico, ensaísta e membro da Academia
Brasileira de Letras, Antonio da Silva Mello é considerado o maior divulgador
das belezas de Guarapari e das propriedades medicinais das areias monazíticas.
Vários de seus artigos circularam o mundo na primeira metade do século passado
O caso foi parar na
Justiça Federal após a denuncia da prefeitura de que a a Nuclemon estava
extraindo areia em terrenos ilegais e destruindo trechos da Rodovia do Sol e de
praias onde a exploração já havia sido embargada por leis do próprio município,
como Areia Preta, Praia dos Namorados e Praia do Morro.
Diante da batalha
judicial, a Nuclebrás alegou que o trabalho em Guarapari era estratégico para
os interesses nacionais, uma vez que somente a cidade capixaba era responsável
por 20% de toda a produção de minerais pesados do Brasil. A empresa conquistou
o direito de seguir explorando as areias de Guarapari por mais três anos,
encerrando suas atividades de uma vez por todas em 1986.
A partir daí, o
município consolidou seu lema de “Cidade-Saúde” e passou a receber cada vez
mais turistas interessados nas areias medicinais. As praias se urbanizaram e a
estrutura hoteleira melhorou. A cidade incrementou sua vocação turística e hoje
chega a receber mais de um milhão de visitantes durante o verão. Talvez parte
de um sonho idealizado pelo médico Antônio da Silva Mello a partir de 1930, de
que aquela antiga vila de pescadores guardava um tesouro para a medicina e para
a cura de milhões de pessoas por meio de suas areias radioativas.
Os artigos de Silva
Mello rodaram o mundo, e atraíram estudiosos e curiosos para o balneário
capixaba desde então.
A AREIA TRAVAVA CÂNCER
Na França, o laboratório de Marie
Curie (1867-1934), ganhadora de um Prêmio Nobel por seus estudos em
radioatividade, foi um dos que usou areia monazítica de Guarapari em seus
estudos
Nos arquivos
público franceses, mais de 210 documentos entre cartas, pedidos de material e
recibos ligam a Société Minière Industrielle Franco- Brésilienne,
precursora da Mibra, em Guarapari, a diversos laboratórios franceses e
alemães.
A maioria dos
contatos são de compra, venda e aluguel de tubos de Tório entre a empresa e o
Institut du Radium, laboratório presidido pela ganhadora do prêmio Nobel de
Química, Marie Curie. Ela e o marido, Pierre, foram responsáveis pela
descoberta da radioatividade e por ter dedicado a vida às pesquisas sobre o uso
terapêutico dos materiais radioativos.
As trocas
aconteceram entre os anos de 1911 e 1934.
Segundo o estudo
“Marie Curie and the Radium industry” do pesquisador Xavier Roqué, a partir de
1903 o uso na medicina de materiais radioativos foi popularizado na França, o
que fez aparecer um mercado de extração de materiais radioativos pelo mundo. O
material era usado em centros de tratamento de câncer tanto em Paris quanto em
outras cidades. Na capital Francesa, a Société Minière et Industrielle
Franco-Brésilienne mantinha um escritório no número 20 do boulevard Montmartre,
e uma usina de tratamento de tório e outos materiais radioativos na cidade de
Clichy. Por questões de segurança, nos anos 80, a usina foi demolida e
enterrada pelo governo francês.
Já os pesquisadores
Bernward Joerges e Terry Shinn, autores do estudo “Instrumentation Between
Science, State and Industry”, a Minière foi criada, inclusive, com a supervisão
da pesquisadora Marie Curie para fornecer material e logística ao seu
laboratório, assim como outros laboratórios e empresas da Europa,
principalmente da Inglaterra e Alemanha.
Além da pesquisa,
os laboratórios utilizam o tório na fabricação de aparelhos de radioterapia e
de sais luminosos (material fosforescente usado em pinturas e em agulhas).
Marie Curie visitou
o Brasil em 1926, atraída pela fama das águas radioativas do Termas de Lindóia,
em São Paulo. Na época, o local já era conhecido como terapêutico. Curie
visitou o local durante um dia.
A visita às terras
brasileiras, no total, durou mais de 40 dias. Madame Curie esteve em São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde visitou o primeiro hospital brasileiro
especializado em tratamento de câncer com uso de radiação. Marie Curie
faleceu em 1934, depois de muitos problemas de saúde, provavelmente em razão da
contínua exposição à radiação.
O lixo na latinha
Afinal, o que teria
acontecido com as toneladas e mais toneladas de tório exportados para os
Estados Unidos principalmente durante a Guerra Fria? No final das contas, o que
restou delas agora é encarado como problema de segurança nacional e opinião
pública.
Exemplos de compartimentos onde o
urânio-233 está armazenado, sob a forma de pastilhas e óxido, entre outras.
Foto: DOE-USA
Pouco mais de 1.500
quilos de Urânio-233 criado a partir do tório – e que chegou a ser testado em
bombas e reatores na década de 1950 – está agora armazenado em latas e tubos em
um depósito do governo americano no estado de Tennessee. Novas tecnologias nucleares
mais seguras tornaram obsoleta a pesquisa com U-233 há várias décadas. Sem
serventia, o governo decidiu transportar esse material para um túnel de
armazenamento de lixo nuclear em Nevada, justamente onde as bombas atômicas
eram testadas, perto de Las Vegas.
A iniciativa, com
custo estimado de 500 milhões de dólares, mobiliza a opinião pública nacional e
sobretudo da população de Nevada, sendo alvo constante de protestos de
ativistas. No entanto, testes para o transporte foram iniciados em maio de 2015,
e o envio pode acontecer a qualquer momento. O urânio-233 armazenado é
considerado de “baixo nível de risco” pelas autoridades americanas.
Robert Alvarez,
especialista em estudos políticos e consultor do Departamento de Energia dos
Estados Unidos durante o governo de Bill Clinton, estima que 200 toneladas de
u-233 foram produzidas a partir de 800 toneladas de tório entre 1954 e 1970,
nos EUA. O custo dessa produção pode variar entre US$ 5,5 e US$ 11 bilhões de
dólares.
A constatação de
diversos especialistas americanos é de que a corrida nuclear durante a Guerra
Fria acabou gerando estoques de matéria-prima e materiais processados que hoje
geram apenas dor-de-cabeça para o governo. Um exemplo emblemático disso é
justamente o tório enviado das praias brasileiras e o urânio de laboratório
produzido a partir dele.
Algumas correntes
chegam a especular sobre o perigo desse material radioativo nas mãos de nações
ou grupos com interesses bélicos. Outros cientistas defendem a teoria de que
reatores de tório podem ser soluções viáveis para a geração de energia elétrica
atualmente. De qualquer modo, a constatação de que toneladas e mais toneladas
de areia exportada durante décadas acabam por se tornar um problema envolvendo
latinhas de lixo radioativo é, no mínimo, curiosa.
EM CHICAGO, AREIA FOI USADA EM ATERRAMENTOS
Vista da região de Streeterville, a
oeste de Chicago, onde boa parte do bairro foi aterrado com areia monazítica ao
longo do século XX. Foto; Matt Howry / Flickr / creative commons
Sede da Lindsay
Light & Co, a maior compradora norte-americana da areia monazítica
capixaba, a cidade de Chicago também vive hoje um impasse em relação ao que
sobrou da matéria prima usada pela empresa, que utilizou o tório primeiramente
para fabricação de lâmpadas e, mais tarde, foi a principal fornecedora do
material para os projetos secretos de construção de bombas atômicas.
Reportagens de
diversos jornais de Chicago nos últimos anos relatam que, após feita a
separação do tório, a areia que sobrava era vendida para utilização em aterros.
Assim, a região de Streeterville, fortemente industrializada na época, recebeu
toneladas de aterro radioativo para construção de novos prédios e fábricas.
Ninguém sabe exatamente quando a venda da sobre de areia foi encerrada pela
Lindsay Light, mas o bairro passa atualmente por uma modernização e a
construção de novos edifícios residenciais, hotéis e condomínios de luxo
levanta o risco à saúde ao se revirar a areia radioativa.
Local onde foram depositadas
toneladas de areia pela Lindsay Light Co, a maior compradora da areia
brasileira. Foto: Illinois Emergency Management Agency
Em entrevista ao
jornal Chicago Tribune, representantes da Agência de Proteção Ambiental dos EUA
informaram que a inalação de poeira contaminada por tório aumenta o risco de
desenvolver câncer de pulmão e pâncreas. Grupos ativistas lutam há pelo menos
20 anos pelo desenvolvimento de projetos para retirar completamente a areia da
cidade.
Em uma década, uma
ação para retirar a areia contaminada retirou 13.500 toneladas do
material de diversos terrenos de Chicago. A areia é enviada para um aterro
licenciado a trabalhar com resíduos radioativos, em Utah. As multinacionais que
assumiram o controle da Lindsay Light fizeram acordos com a Justiça e se
comprometeram a injetar recursos para auxiliar na limpeza desses terrenos. O
custo para retirada de toda a areia é estimado em US$ 121 milhões. A estimativa
de governantes é de que quase 150 mil toneladas dessa areia foram
despejados em terrenos a oeste de Chicago. Não é difícil presumir que grande
parte do polêmico material enterrado em Chicago tenha sido retirado de
Guarapari. Em seu depoimento à CPI da Energia Atômica, Boris Davidovitch havia
declarado que o principal cliente da Mibra era justamente a Lindsay Light, da
qual o próprio Boris possuía participação acionária.
Mais de 600 casas cujo solo foi
aterrado com restos industriais de monazita e tório tiveram de ser limpas ao
longo da década passada. Algumas foram desocupadas para a retirada do solo contaminado.
A limpeza residencial já foi concluída em Chicago, de acordo com o governo
local. Foto: Illinois Emergency Management Agency
Pelo menos seis
regiões de Chicago, inclusive residenciais, receberam a areia para aterro. Uma
área utilizada pela Lindsay Light ficou conhecida como “montanha de tório” pela
grande quantidade de material concentrado. Apesar de boa parte da limpeza já
ter sido efetuada, o impasse agora fica por conta do destino do lixo
industrial, e não apenas em Chicago: assim como a Lindsay Light, estima-se que
pelo menos outras 15 indústrias atuaram na produção de mantas de tório para
lâmpadas em diversos Estados americanos, e tenham comprado, em quantidades
desconhecidas, areia monazítica no período entre 1900 e 1930.
O grande volume de
areia aterrada em Chicago também sugere que a quantidade exportada pelo Brasil
é realmente maior do que as 100 mil toneladas declaradas oficialmente. Em 1950,
reportagem do jornal Chicago Tribune detalhava a preocupação do setor
industrial norte-americano com a possibilidade de uma lei brasileira proibir a
exportação de monazita a partir do ano seguinte. Ouvido pela reportagem,
Charles Lindsay, proprietário da Lindsay Light, detalhou que havia uma grande
corrida pela monazita por conta dos projetos atômicos americanos. Ele alegou
que o governo brasileiro estaria fazendo pressão para que Lindsay instalasse
uma fábrica no Brasil para tratamento do tório. Ele também declarou ao jornal
que “mantinha um grande estoque de areia monazítica nos Estados Unidos”, sem
citar, porém, a quantidade.
CURIOSIDADES
- Foi na
época de bastante movimento no porto de Guarapari que foram criados os
hotéis Torium, Radium e Monazita. O Radium foi um casino muito frequentado
na década de XX, e símbolo de ostentação da classe mais abastada do
Espírito Santo. Hoje está desativado.
- Boris
Davidovitch é nome de rua na Praia do Morro, em Guarapari, exatamente a
mesma onde funcionava a antiga Inaremo. Não é possível precisar a data
exata da criação da lei, na Câmara dos Vereadores da cidade, que dá à rua
o nome do empresário russo
- Augusto
Frederido Schmidt, além de proprietário da Orquima, que explorava areia no
Norte do Espírito Santo, foi um grande empresário paulista, criador de uma
rede de supermercado e firmas industriais. Ele também é criador do famoso
slogan “50 anos em 5”, usado na campanha de Juscelino Kubitschek para a
construção de Brasília. No entanto, o fato mais curioso é que Schmidt é um
dos poetas mais conhecidos da segunda geração do Modernismo brasileiro,
com três livros publicados. Assim como Boris Davidovitch, morreu após um
infarto fulminante.
- O
problema da exploração ilegal de areia monazítica também foi denunciado
pela imprensa da Índia, sobretudo por volta de 1990. Reportagens de
diversos jornais relatavam que empresas escondiam o volume de areia
retirado, exportava sem autorização e causava impacto a comunidades em
volta das áreas com maior volume de areia monazítica.
- A
Índia, aliás, que desde o fim da Segunda Guerra Mundial havia proibido a
exportação de terras raras, trabalha atualmente em um reator de tório para
geração de energia. A tecnologia também é visada por países como China e Irã.
A previsão é de que o reator indiano entre em operação a partir de 2018.
- Em 2013, o Brasil negociou a venda de 16 mil toneladas de Torta II, resíduo radioativo proveniente do tratamento químico da areia monazítica. O comprador foi uma empresa de Taiwan chamada Global Green, que domina técnicas para extrair terras raras desse tipo de resíduo. A alegação na época é de que o Brasil não possui tecnologia para fazer essa extração. O estoque ficava situado na cidade mineira de Caldas. De acordo com as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), o material é estocado desde 1940.
- REFERÊNCIAS
- Robert
Alvarez (2013): Managing the Uranium-233 Stockpile of the United States,
Science & Global Security: The Technical Basis for Arms Control,
Disarmament, and Nonproliferation Initiatives, 21:1, 53-69; disponível online
- Depoimento
de Boris Davidovitch à CPI da Energia Atômica de 1956, Diário do Congresso
Nacional, 30 de outubro de 1956, disponível online
- Uranium
Substitute Is No Longer Needed, but Its Disposal May Pose Security Risk,
New York Times, 23 de setembro de 2012, disponível online
- U-233
Disposition Project Update, Departamento de Segurança dos Estados Unidos,
2011, slides disponíveis clicando
aqui
- A
Física Atômica no Brasil: da questão das areias monazíticas à CPI de 1956.
Mário Fabrício Fleury
- Especial
Município A Gazeta -Guarapari – 26 set 1994
- A bomba atômica dos militares –
Revista Aventuras na História, publicado em 17/8/2011
- Instrumentation Between
Science, State and Industry – edited by Bernward
Joerges, Terry Shinn, 2001
- Guarapari,
muito mais que um sonho lindo. Beatriz Bueno, 2012
- “Testes
são possíveis há dois anos”, Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 de agosto de
1986
- “A
bomba atômica no porão”, Veja, São Paulo, n. 792, abril de 1987
- “Na
cerimônia e nas ruas, átomos de discórdia”, Folha de S.Paulo, São Paulo, 9
de abril 1988
- Mineração: Guerra pelas terras raras,
Unesp, 09/04/2012
- A política nuclear brasileira
entre 1945-1964. Fabiano Farias de Souza (UERJ)
- “Serra
do Cachimbo pode ser local de provas nucleares”, 08/Agosto/1986, Folha de
São Paulo
- Especial
“A Nuclebrás em Guarapari”, Maura Fraga, Jornal A
Gazeta, 15/05/1983
- “Nuclebrás
fica em Guarapari por mais três anos”, Jornal A Gazeta, 7/05/1983
- Reportagens
publicadas pelos jornais Tribuna da Imprensa (RJ), Revista da Semana (RJ),
Diário de Notícias (RJ), Folha Capixaba (ES), Diário da Noite (RJ)
- Chicago
Tribune, “Brazil acts to bar export of minerals”, 3 de abril de 1950. Disponível online
- Fluvial
Monazite Deposits in the Southeastern United States. Department of
Interior, EUA, 1968. Disponível online
- The
geologic Occurrence of Monazite, Department of the Interior. USA, 1967. Disponível online
A
reportagem contou com a colaboração de Anelize Nunes (Cedoc), Arabson
(ilustrações), Marcelo Franco (Ilustrações) e Wing Costa (edição de vídeo)
Publicada em
29/08/2015
http://especiais.gazetaonline.com.br/bomba/
Nenhum comentário:
Postar um comentário